Entre o giz e o grito
- Nathália Carvalho
- 27 de mai.
- 9 min de leitura
Atualizado: 18 de jun.
Batalhas na política e na educação
A luta continuou sendo defendida por Nice em outros meios. No jornal 4 Bocas, em junho de 2014, ela produziu um artigo que trazia o seguinte questionamento no título: “Por que reivindicar a autonomia da UEMA?”. Cerca de 80 professores substitutos do campus Imperatriz haviam trabalhado seis meses sem receber salários e sem os contratos assinados pela reitoria. “O custo dessa política repercute nas avaliações da universidade, que não aparece nem entre as melhores 150 universidades do Brasil”, escreveu Nice.
Atualmente, a Uemasul promove o cursinho popular por meio da Pró-reitoria de Extensão e Assistência Estudantil (Proexae), com o objetivo de possibilitar o acesso de jovens e adultos de escolas públicas, em situações de vulnerabilidade social, à educação superior. Somente em 2017 o programa foi institucionalizado. Mas essa iniciativa teve início por volta de 2006, pelo Diretório Central dos Estudantes (DCE). Após um período de interrupção, em 2010, a gestão de Jhonny Santos retomou as atividades.
Nessa época, Nice já lecionava história na rede estadual de ensino, no Centro de Ensino Graça Aranha, onde ingressou em 2011, e foi convidada para colaborar com o projeto. O ex-coordenador Jhonny Santos contou que os líderes estudantis enfrentaram barreiras para instituir o cursinho popular. “O pessoal não queria. Alguns diretores viram aquilo como uma forma da gente alimentar o movimento", afirma.
A união fortalecia essas movimentações por Imperatriz. Era um sábado à noite, no ano de 2005, quando um grupo decidiu se organizar na praça Mané Garrincha, com intuito de barrar a entrada do ex-presidente da República e ex-governador do Maranhão, José Sarney, no Centro de Convenções. Ele viria para dar uma palestra sobre o acordo ortográfico da Língua Portuguesa. Cerca de 15 pessoas, incluindo Nice, patinadores e skatistas, saíram em marcha até o local do evento, que ocorria no Centro de Convenções. “Fizemos um cordão ali na frente e não deixamos o Sarney entrar. Ele tinha acabado de chegar do aeroporto e a gente ficou lá gritando, protestando”, detalha Jhonny.
Agostinho Noleto, na época, vice-presidente da Academia Imperatrizense de Letras, tentou conter o movimento. "Uma turma muito grande na porta do salão gritando palavra de ordem. Chamei a polícia e não veio. E eles continuavam lá, gritando e esbravejando o Sarney", declara. José Sarney contou toda sua história de vida a Agostinho Noleto e em seguida alegou que não ia jogar fora sua trajetória, "comparecer e levar tomates e ovos podres." Após a conversa, foram jantar no restaurante Ritz, oferecido pelo então signatário.

Durante o período eleitoral de 2018, Renan e Nice participaram do movimento “Ele Não”, uma manifestação de mulheres em repúdio ao então candidato à presidência Jair Bolsonaro. Começaram a panfletagem pelos seus vizinhos, em um bairro atrás da Uemasul.
Nessa trajetória de militância, aconteceu um conflito no bar Pêxi Pôdi, ao lado da praça União, região em que eles moravam, um quarteirão depois. O dono discutia com alguns frequentadores, quando Nice e Renan decidiram convencer as pessoas a mudarem de voto. Porém, o embate não se limitou a divergências políticas. De repente, a situação esquentou, com um cenário de acusações e insultos. “Não tem aquele momento em que todo mundo virou estuprador de esquerda?”, perguntou Renan.
O clima após esse episódio deixou os amigos envergonhados de andar pelas ruas do próprio bairro. “Apesar da gente ser doidão, a gente era extremamente respeitado: é professora Nice e professor Renan. Falavam que eram professores, mas professores do PCC (Primeiro Comando da Capital)”, conta Renan, aos risos.
Na escola Graça Aranha, os apelidos também aconteciam. Nice, conhecida por suas ideias progressistas, tinha um rótulo que a acompanhava: “professora comunista”. O debate se repetia em sala de aula. Certa ocasião um aluno lançou a pergunta com um tom de deboche: “Professora, a senhora é comunista, né?”. Ela respondeu: “Não se trata de ser ou não ser. A questão é que vivemos dentro de um sistema capitalista. Não tem como ficar alheio a isso. Precisamos sobreviver.” O aluno insistia: “Ah, mas a senhora tem um iPhone!” Ela continuou a explicar que viver dentro do sistema não significa aceitar suas regras sem questionamento: “Eu faço parte desse mundo. Não tem como ignorar, preciso fazer minha parte em algumas questões”, refletia.
A política na vida de Nice sempre foi presente e depois de entrar na universidade, se intensificou, como lembra a irmã, com referência aos seus picos de saudade. “Chega a época de política piora, porque a vida dela era política. Então ela sempre se envolvia mesmo. E aí, a gente diz que tudo vem à tona”, exprime Ana Regina.
Aurélio do PT complementa que uma das exigências de Nice era que o parlamentar tivesse um contato direto com o eleitor. "Pra saber o que aquela comunidade realmente precisava”, expressa o vereador. Nice não acreditava em mandato de gabinete. Defendia que os políticos estivessem na base, ouvindo, dialogando. “Vão lá e vejam se estão precisando de água. Eles vão dar três prioridades. Vão dizer 20”, lembra Aurélio. Qual era o conselho? “Tem prioridade demais, como é que faz?” Analisar quais são as mais urgentes. Saia de lá e diga que vão escolher uma. Ela ensinou a organizar a escuta e construir o planejamento com base nela. “Se for a água mesmo, então vamos resolver a água. Depois a gente discute a creche. A água é vida, sem água complica o negócio.” E assim seguiam. Um problema por vez, a partir do que o povo dizia.
No percurso da educação no Maranhão, Nice também fez parte do aprimoramento de professores de escolas públicas sem formação adequada, ajudando-os a ingressar no ensino superior, por meio do “Caminhos dos Sertões”.

O programa, criado em 2018, estreou em 2020 sob coordenação dela. “Ainda temos índices negativos sobre formação profissional que impactam na qualidade do ensino, e a gente precisa modificar essa realidade, o que é papel da universidade”, declarou Nice à Assessoria de Comunicação (Ascom) da Uemasul.

Essa ação da universidade estabeleceu quatro unidades nas cidades maranhenses de Vila Nova dos Martírios, Itinga do Maranhão, Amarante e Porto Franco, abraçando também outros 18 municípios.
Nice durante ações do Caminhos dos Sertões

Nice enxergava no cinema uma possibilidade educativa, tanto por meio da ficção quanto do documentário. Ambos os formatos poderiam ser usados nas aulas de História e contribuir para outras áreas do conhecimento. Em 2014, essa visão se concretizou. Como professora substituta do Departamento de História e Geografia do CESI/UEMA, em Imperatriz, ela trabalhou a disciplina optativa “História e Cinema". Embora já constasse na grade curricular há anos, a matéria foi ofertada pela primeira vez naquele período.

A partir dessas experiências, Nice decidiu cursar o mestrado profissional em História na Universidade Federal do Tocantins (UFT), em Araguaína (TO), entre 2016 e 2018. A linha de pesquisa contemplava a cinematografia. “Era uma época que o cinema foi estigmatizado como lugar, quando não tinha aula: ‘passa um filme’. ‘Ah, faltou um professor, passa isso’. Vigorou uma encheção de linguiça terrível”, elucida o professor Gilberto Freire, que considerava essa atitude “um crime”. A dissertação de Nice, intitulada “Cinema e ensino de História na escola Graça Aranha, em Imperatriz (MA)”, ganhou vida neste estabelecimento de ensino, local que iniciou sua jornada de professora em 2011 e seguiu atuando até a sua morte.
Fora os alunos, os professores também foram beneficiados com o mestrado de Nice. João Cândido Carvalho, 40 anos, que continua sendo docente de História da escola Graça Aranha, dividiu, além de turmas, conhecimento e incentivos com a colega. Ele relata que ela ensinou os professores a trabalharem os filmes em sala de aula, tanto no campo da produção quanto na análise das obras. “Ela trouxe para nós oficina de percepção, de enquadramento, de intencionalidade, de fotografia, essas coisas dos filmes", destaca.
Graças a esse movimento, nasceu o Ubuntu, um projeto que une o cinema e a luta antirrascista. Em geral, são quatro dias de eventos, com sarau, peças teatrais, leitura de poemas, exposição de desenhos e debates. Ubuntu é uma palavra existente nas línguas zulu e xhosa, faladas na África do Sul, que exprime um conceito moral, uma filosofia, um modo de viver que se opõe ao narcisismo e ao individualismo.
Além disso, Nice impulsionou outro caminho acadêmico de João Cândido Carvalho: “O meu mestrado foi por ter participado das oficinas [2017] com ela e ter visto a forma como ela estava trabalhando essa questão do mestrado. No ano seguinte [2018-2020], eu decidi escrever e também fazer o mestrado na UFT, e no mestrado eu fiz um documentário tendo como base o que eu aprendi na oficina dela. Mais que tudo isso, foram coisas que fui aprendendo a partir dela”, reflete o professor.
Nice deixou um legado de ações que permanecem vivas no Graça Aranha, como as semanas da Consciência Negra, do Ativismo da Mulher e dos Povos Indígenas, temáticas fomentadas pela professora. “Ela sempre foi muito à frente do tempo. Quando a gente vinha com o tradicional, ela já vinha com outras expectativas, com outra forma de ensinar, com outras formas de abordagem muito interessantes”, descreve João Cândido Carvalho.
A partir das conversas e dos encontros — e, especialmente, da presença de Nice Rejane, o grupo de Humanas do Graça Aranha se fortaleceu. Constroem coletivamente, planejam juntos, compartilham materiais, ideias e práticas. O que um faz, o outro usa, e vice-versa. Foi em reconhecimento a essa influência que o grupo passou a se chamar Coletivo Nice Rejane. Embora composto predominantemente por professores de Humanas, também acolhe colegas de Linguagens e de outras áreas. “Demos esse nome por conta da presença marcante dela, das contribuições que deixou aqui na escola. Se hoje somos um grupo coeso, que trabalha muito unido, são pelas provocações que causou na gente”, afirma João Cândido Carvalho.

Entre 2019 e o início de 2020, Anna Luiza Oliveira Cruz, então com 20 anos, foi aluna de Nice Rejane no Ensino Médio. Nice abordava temas como feminismo, sexismo e racismo em suas aulas, principalmente sobre os povos indígenas. “Tinha alunos indígenas lá na sala e ela dava bastante voz pra esses alunos falarem sobre a cultura deles, sobre o que acontecia”, relembra Anna .
Nice detestava quando, em um grupo majoritariamente feminino, a linguagem automaticamente mudava para o masculino. Por exemplo, se havia 20 meninas em um lugar e chegava um único menino, e alguém dizia “todos vocês”, ela logo corrigia: “todas e todos”. Por mais que na Língua Portuguesa o uso do masculino predomine em diversas circunstâncias, inclusive, quando se refere ao plural, Nice não gostava da ideia de que a presença de um homem anulasse a das mulheres, como se elas se tornassem invisíveis. Segundo Anna Luiza, Nice era uma das professoras que realmente trazia a História de forma crua. Não era só pegar um livro e mandar ler ou responder um exercício. “Ela falava, trazia documentários e levava filmes”. E mais do que isso: “Pedia para a gente fazer críticas desses filmes. Éramos obrigados a assistir”.
Anna Luiza acredita que uma das maiores diferenças em sua trajetória foi a transição para uma escola pública. Até então, havia estudado em escolas particulares evangélicas, tanto no ensino fundamental I quanto no II. Mas, ao chegar no Graça Aranha, encontrou uma professora que tirava os alunos da bolha e os colocava diante do mundo real. “Era impactante para quem cresce em uma escola mais fechada, aquelas bolhas religiosas. Ela também trazia muito sobre religiões de matrizes africanas”, comenta Anna Luiza.
Os assuntos eram abordados com profundidade, sem superficialidade. “Ela não ficava tentando minimizar o que acontecia historicamente, principalmente aqui no Brasil”, destaca Anna Luiza. “Isso fez muita diferença pra gente.” Como qualquer ser humano, alguns estudantes não gostavam de Nice, e isso, de certa forma, era esperado. Anna Luiza lembrou de uma conversa com um amigo da faculdade, quando compartilhou: “Cara, eu tinha uma professora de História que ela era maravilhosa. Eu gostava muito dela”. Ele respondeu: “Eu tinha uma professora de história na UEMA, assim, eu odiava ela.” Ela, curiosa, perguntou quem era. Ele disse o nome da Nice. Anna ficou sem acreditar: "Como assim?" Foi aí que ele explicou como ela costumava pegar no pé dos alunos.
O comportamento da professora, embora isso nunca tenha a incomodado, foi mencionado por Anna Luiza. Quando Nice percebia alguém não estava se importando com o que dizia, que não estava lendo ou fazendo as tarefas, ela não deixava passar. Fazia questão do aluno estudar de verdade. Não gostava de estudante que chegava atrasado, de quem ia beber água e não voltava. Ia lá e arrastava a pessoa de volta para a sala. “Ela era muito, assim, potente! Uma pessoa muito forte”.
O respeito por Nice já era natural entre os alunos que se identificavam com ela, mas uma atitude específica fez com que Anna Luiza passasse a admirar a professora ainda mais. "Havia um estudante na minha sala que era, assim, uma pessoa horrível", relembra. "Ele assediava as meninas, assediava os meninos, assediava os professores psicologicamente. Ele batia na bunda das meninas, pegava no peito. Inclusive, ele me assediou também."
Os alunos denunciavam o comportamento do garoto, mas nada acontecia. A diretoria se manteve em silêncio. Fizeram até um abaixo-assinado. Mas Nice era a única que escutava. Perguntava o que estava acontecendo, dizia que ia na diretoria tentar resolver. E ela ia, só que nada mudava. Chamava o pai do menino, Nice insistia. Defendia as alunas que estavam sendo assediadas, batia de frente com a forma como o garoto se posicionava. E, então, ele se tornava cada vez mais agressivo com Nice. "Falava mal dela pelas costas, porque a Nice não escondia quem era. Ela era uma mulher negra, LGBT. Ele era racista, muito homofóbico. Tudo que ela era incomodava muito esse aluno", comentou Anna Luíza.
A perseguição ultrapassava os limites das salas de aula. O estudante fazia comentários racistas e homofóbicos, mas, mesmo assim, Nice não recuava. "Toda aula botava ele pra fora da sala. Ele desrespeitava, falava alguma coisa, e ela mandava sair”, revela Anna Luiza. Mesmo sem apoio, Nice continuava tentando. Chamava os responsáveis, denunciava, levantava a voz pelos estudantes que sofriam assédio e preconceito, que até mesmo escutavam “cabelo de bombril”. Mas, sozinha, não conseguia mudar tudo.


















