Ainda que parta, continua...
- Nathália Carvalho
- 4 de mai.
- 7 min de leitura
Atualizado: 18 de jun.
Morte e legado
"Quantas primaveras essa negra tem pra narrar", publicou Nice Rejane no Twitter, acompanhado de uma foto do rosto, em setembro de 2020. No dia 25 de março de 2021, ela faleceu.

Nice falava pouco sobre a situação de saúde que estava enfrentando. A primeira vez que ela comentou foi com a irmã Ana Regina, quando uma dia saíram para almoçar. Disse que faria alguns exames, estava sentindo muita coceira, poderia ser uma alergia. Mesmo tomando remédios, o incômodo continuava. Nesse encontro, a irmã notou que ela estava meio pálida, estranhou a cor da pele. Mas achou que era por conta das festas de final de ano, muita curtição com bebidas alcoólicas e farra.
Era característico de Nice seguir com a vida normalmente e ainda soltar piadas com a situação de forma oculta. “Qualquer hora vocês vão me ver de cabelo raspado”, disse ela a João Cândido Carvalho. Ele achou que fosse só mais um estilo, ela adorava mudar o visual. Não era isso. O problema na pele a fez raspar parte do cabelo. O couro cabeludo coçava, incomodava.
Em janeiro de 2021, Nice passou mal e foi para o hospital. O médico mencionou que não era problema alérgico, percebeu os olhos dela muito amarelos. Pediu para interná-la e fazer mais exames. Por conta das coceiras, criavam-se caroços e surgiam feridas. Uma semana se passou, e nada do diagnóstico. Até que um dia, Nice brigou com uma enfermeira, arrancou os acessos e disse que ninguém aplicaria mais nenhum remédio nela até descobrirem o seu problema.
Após fazer mais exames, como tomografia e outros mais rebuscados, dois dias depois recebeu a notícia: estava com problema no fígado, especificamente, na bile. O líquido produzido no órgão, de coloração amarelo-esverdeada, estava a intoxicando, pois os canais estavam entupidos com uma massa. Era um tumor maligno mediano. Precisaria fazer uma cirurgia, ia perder 40% do fígado.
Nice e as duas irmãs foram a uma consulta com o médico especializado. Ele explicou que era possível, porém arriscado. Mas a preocupação de Nice era outra, quando soltou o questionamento: “Doutor, depois da cirurgia, como vai ficar minha vida social? Eu vou poder beber? Quando?”. Ana Regina conta que sua reação era olhar para a irmã mais velha “morrendo de vergonha".
Dois meses depois, em março, Nice fez a cirurgia. Era um sábado, durou 10 horas. Também pelo fato de ter sido gravada, tornou-se uma cirurgia modelo para fonte de pesquisa. Ocorreu tudo bem, ela saiu da sala conversando. No dia seguinte, já se notava a diferença na cor da pele, voltando à naturalidade. Na quarta-feira, quatro dias depois, a irmã foi visitá-la novamente. Aguardou ser chamada, mas isso não ocorreu, ficou preocupada.
Quando todos saíram da sala, o médico a chamou: “Olha, a Nice teve uma tosse de ontem para hoje. Demos medicação, mas ela vomitou tudo. Depois começou uma falta de ar e ela não está bem”. Era Covid-19. Foi entubada na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Não podia ser transferida e nem tomar medicação para o coronavírus. O fígado ainda não estava metabolizando, a situação era delicada.
Na quinta-feira à tarde, o médico informou que o quadro era ruim. Deixou Ana Regina consciente da situação, tanto que ela nem teve coragem de contar para a família. Por volta das 21 horas do dia 25 de março de 2021, o celular de Ana Regina tocou, quem atendeu foi o marido. Ela já sentia o que poderia ter acontecido: Nice tinha partido.
No dia 21 de novembro de 2021, era como se a Imperatriz acordasse com marcas de saudade coladas em muros, especialmente na avenida Beira-Rio e na frente da Escola Estadual Graça Aranha. Cartazes que estimulavam memórias e contavam, de forma silenciosa, a história de uma mulher que se tornou símbolo. Foi pensando nisso que nasceu uma ação voluntária, coletiva e cheia de afeto. Amigos como Daniel Sena, Didi Praes, a ex-companheira Jarleane Militão, Antônio Fabrício, Fernando Ralfer e Renan Chaves se reuniram, na noite do dia 20, para prestar homenagem a Nice.
Dois anos depois, em setembro de 2023, o nome de Nice Rejane voltou a circular. Mas não por uma lembrança carinhosa, nem por uma homenagem tardia. Apareceu como votante ativa numa eleição de condomínio, no dia 19 de novembro de 2022, às 16 horas e alguns minutos. O caso veio à tona depois que o hoje vereador Whallassy Oliveira (PT) publicou prints da lista de votação em seu perfil no Instagram. Dentre os nomes: Nice Rejane da Silva Oliveira. O caso aconteceu no condomínio Village do Bosque 2, onde Nice morou.
O síndico à época, Reubeth Gomes Sampaio — conhecido como Júnior — estava no comando desde 2018 e, em 2022, buscava a reeleição. A gestão dele já vinha sendo questionada por moradores. Prestação de contas opaca, problemas estruturais. Um condomínio com mais de R$ 45 mil entrando todo mês, mas que vivia à base de gambiarras e promessas. Segundo relatos de condôminos, Reubeth tentava apagar rastros. Quis mudar o sistema de monitoramento, não entregava os cadernos de despesas. A conta não fechava. Em cinco anos à frente do condomínio, aproximadamente R$ 2 milhões em caixa tinham sido movimentados e pairavam muitas dúvidas no ar.
O voto de Nice constava na lista da eleição de 2022. Mais do que isso, um log do sistema apontava que o e-mail “reubtgh@gmail.com” acessou a conta vinculada a ela dias antes e dias depois da votação. A movimentação aconteceu em 17 de novembro — véspera do pleito — e novamente no dia 30, de madrugada. A família de Nice, procurada por vizinhos, afirmou que ninguém havia usado login, senha ou qualquer dado para participar da votação. Nunca autorizaram e nem votaram por ela. “Junior, sou amigo da família da finada Nice Rejane”, disse Guilherme Barros. Na mensagem, detalhou datas, acessos, alterações no sistema. E encerrou com a pergunta: “Você pode me confirmar isso?”.
Memórias que persistem
Entre um evento de rock e outro, no bar do TNT, que só vendia drinks, o encontro de entre Nice e o jornalista Jairo Alves, conhecido como Gonzo Sade, 41 anos, aconteceu. Depois veio uma descoberta: eram vizinhos do bairro Bacuri. A mãe dela comprava carne no açougue que funcionava na casa de sua família e ele não sabia. Um tempo depois, as festas do professor Gilberto os aproximaram ainda mais. Era um ritual: bebida farta, taças de martini, banhadas de cigarros e prateleiras cheias de filmes. Nice aprendeu a gostar de drinks nesses momentos, era sua marca. Mas sua verdadeira paixão vinha do cinema. O professor Gilberto Freire apresentou esse mundo a ela. Festas temáticas, tudo que remetia à sétima arte.

Numa mesa de bar, com cerveja posta — mais precisamente no Bar do Gil, reduto de muitas histórias — Gonzo conta que foi a partir dos encontros com o cinema, que surgiram os aniversários temáticos de Nice. Era uma cerimônia, toda vez que ela completava mais um ano de vida. Como boa devota da cultura, havia também rituais paralelos. Nas noites de Carnaval, enquanto o resto da cidade se entregava ao batuque das ruas, Nice e Gonzo tomavam outro rumo. Iam para a casa de Didi Praes, ouvir samba em discos de vinil.

Quem convivia próximo de Nice, sabia que levava o cinema para tudo — até para o intervalo do almoço. João Cândido Carvalho lembra, feliz, da conversa: “Ela me disse uma vez que assistia filmes almoçando. E aí eu falei: “Meu bem, você assiste que horas esse tanto de filmes? Porque eu não consigo. Ou eu olho o almoço ou eu assisto”. Aí ela respondeu: ‘Às vezes no intervalo, às vezes eu tô aqui, tô assistindo’. Ela tinha essa coisa de prestar atenção em tudo”, caracteriza.
Em 2008, o atual jornalista, Fernando Ralfer cursava História na UEMA, no turno matutino e Jornalismo na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), no vespertino. Nesse mesmo ano, aos 31 de idade, ele conheceu Nice. Acabou por fazer amizade com amigos em comum dela e algum dia se toparam em um rolê. Se identificaram de cara e sua primeira impressão foi marcante: “Ela não passava descabida. Por conta da forma de se vestir, do cabelo. Era a frente do tempo”, comenta Ralfer, que a caracteriza como emblemática. Causava medo e intimidava as pessoas de forma natural, apenas existindo. Talvez pelo seu jeito despojado, alternativo.

“Mesmo antes de se falar em feminismo, gênero e LGBTQIAP+, Nice já falava. E antes de falar, ela já vivia isso. Ela era bissexual, tanto que teve vários relacionamentos. Sempre se manifestou com muita veemência. E não estava muito preocupada com a opinião dos outros não”, descreve Mônica Mourão.
Há 14 anos essas pautas já eram discutidas por Nice. Certa vez, Fernando Ralfer e Nice saíram para ir à livraria comprar um presente, na rua Dorgival Pinheiro de Sousa, entre as ruas Ceará e Piauí, em Imperatriz. Na loja, vendiam categorias diversas, inclusive evangélicos. Na hora de embalar, a vendedora perguntou se o livro era para um homem ou mulher. Fernando Ralfer, que conhecia bem a amiga, logo pensou: “Não se faz esse tipo de pergunta para Nice”.
Sem rodeios, ela devolveu: “Por quê?” A vendedora explicou: “Porque se for para homem, a gente vai colocar numa embalagem azul e se for para uma mulher vai ser rosa”. Foi o bastante. “Por que rosa é cor de menina e azul é de menino? Quem estabeleceu isso? Por que existe isso?” A moça tentou se justificar, mas Nice seguiu firme nos questionamentos.

Rennan Chaves morava perto da casa de Nice quando ela faleceu. Dois dias depois da morte, um raio caiu próximo dali. “Mas sabe aquele raio que vem com o trovão logo em seguida? Dessa vez foi tudo junto. A luz e o estrondo, de uma vez só. Parecia ter caído dentro da minha casa”, contou.
Ele supõe que o raio tenha caído do outro lado do rio, mas perto o bastante para assustar. Rennan liga para Jarleane Militão: “Tu ouviu isso?” Ela respondeu: “Ouvi”. “Iansã veio expansiva. Explodiu uma árvore na nossa cara. Veio buscar a filha dela. De felicidade ou tristeza. Mas veio buscar”, reflete Renan seguido de um silêncio.

FIM


