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Se partir para repartir

  • Foto do escritor: Nathália Carvalho
    Nathália Carvalho
  • 29 de mai.
  • 6 min de leitura

Atualizado: 18 de jun.

Nice semeou ideias e consciência


Era para ser mais um início de ano letivo comum no campus da UEMA, em Imperatriz. Mas ouvia-se barulho fora dos corredores. Abriram as portas das salas de aula. “Nilde, está acontecendo alguma coisa?” Quando fixaram o olhar, avistaram Nice Rejane, aluna de História e Cláudio Marconcine, de Letras, nus, cobertos de “mar de lama e corrupção". “Meu Deus, eles realmente agora…”, exclamou, surpreso, o professor do curso de Letras, Gilberto Freire de Santana. 


Capa do jornal O Imparcial na sala de vídeo da Uemasul
Capa do jornal O Imparcial na sala de vídeo da Uemasul

Para a época, 2000, especificamente, no dia 13 de março, tal atitude era considerada irreverente. No entanto, além da nudez, Nice e Cláudio protestavam de forma artística. As máscaras usadas remetiam à ideia do Viroso, antigo jornal da universidade, do vírus. Mas naquele momento, era plantada uma semente para o que viria a acontecer 16 anos depois: a formação e independência da Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão (Uemasul). “Nós não tínhamos nada. Nós não tínhamos giz. O único instrumento do professor em sala de aula era o giz, porque só tinha um quadro negro. A gente tinha que sair pedindo”, relata a professora Liratelma Alves Cerqueira, que era diretora do campus na ocasião. 


Porém, a manifestação desagradou alguns. Os dois militantes haviam traçado um plano de que quando terminassem, iriam se lavar no banheiro perto do auditório, vestir a roupa e ir embora. Mas as coisas tomaram um rumo inesperado. A polícia chegou a comparecer na universidade após um suposto telefonema do professor de Administração da época, Alberto Sergio Maia da Silva, que ele nega ter feito. Com intuito de impedir a entrada dos agentes, os alunos se amontoaram na porta do banheiro. 


Por volta das 18 horas do dia do protesto, Liratelma tinha ido em casa levar lanche aos filhos, quando o telefone fixo tocou. Era o reitor da universidade, César Henrique Santos Pires, falando direto de São Luís. “Lira, onde é que você anda? A polícia tá lá no prédio da UEMA”. “Mas o que tá acontecendo?”, perguntou ela. Saiu desesperada. Ao retornar, os policiais informaram que iam prender Nice e Cláudio por atentado ao pudor. Sorte a sua que conhecia Francisco Melo da Silva, o coronel Melo, que solicitou a retirada dos policiais. Procurado para dar a sua versão, ele disse que não tem recordação desses fatos, mas nega ter recebido uma ligação com essa demanda. 


Patrick Alves Madeira relata que havia uma percepção de elitismo. O curso de Administração se via superior aos demais, como o de Pedagogia. A briga pelas melhores salas de aula era constante. Foi nesse cenário que Nice e os estudantes de Geografia, História e Letras, fizeram um contraponto. “A universidade é pública, você não deve lotear uma sala de aula”, dizia-se, destacando a luta pela autonomia da instituição, que na época não existia. 


O professor Maia declarou que em momento algum ligou para a polícia, nem sequer viu viatura na universidade. Caso fosse tomada essa decisão, como argumentou, teria que partir da diretora, a professora Liratelma. Ainda presume que o que pode ter despertado suspeitas sobre ele, seria devido ao seu comportamento não ser apreciado por alguns estudantes e o fato de ele desaprovar a manifestação. A irmã de Nice, Ana Regina, presenciou o protesto e garante que a polícia foi ao local. Mas quando chegou para saber o ocorrido, Nice e Cláudio Marconcine já estavam na esquina da universidade, no bar do Gil, “tomando cerveja de boa”, lembra. 


No momento do episódio, Maia conta que saiu para resolver alguma pendência no Departamento de Educação. Passou poucos minutos lá dentro. Quando abriu a porta, deu de cara com Cláudio e Nice pelados, cobertos de um pó fino, quase transparente. Em Nice chamava mais atenção, parecia pó de ouro. Ele recebeu o exemplar do jornal estudantil Viroso em suas mãos, entregue por algum dos manifestantes. Imediatamente, os dois viraram as costas e saíram em direção ao banheiro. “Foi um choque presenciar aquilo”, expressa o professor de Administração. 


Maia começou a se preocupar com as reação dos pais que estavam prestes a chegar na UEMA para a recepção dos calouros, a aula inaugural. “Qual impressão vão ter?” “O que vão interpretar?” “O que os pais vão pensar disso?”. Para ele, a nudez não era um problema, porque certamente isso já caracterizava como atentado ao pudor. Pensava-se na moralidade, a reação das pessoas que estavam fora dos muros da universidade. “Não me importava com quem estava aqui dentro, pois já estavam acostumados com isso”, pontua Maia.  


O desgaste não acabaria por aí. Os manifestantes foram processados e agora a administração da universidade teria que tomar uma decisão. Existiam três propostas: expulsão da UEMA, de qualquer instituição pública do Brasil ou suspensão. Após o Conselho Superior recusar, o Conselho de Centro decidiu a votação: suspensão por seis meses. Mesmo diante deste veredicto, o professor Maia deu continuidade ao processo e ambos responderam. Ele argumenta que isso decorreu de uma série de acontecimentos dentro da universidade que acumularam e resultaram na ação judicial, e não somente por conta da nudez. Ao todo, foram apresentados cinco jornais que documentaram o fato à petição.


Segundo Mônica Mourão, que ingressou no curso de Letras da UEMA em 1999 e que também fazia parte, como Nice, do Partido dos Trabalhadores (PT), as greves estudantis eram um recurso constante do movimento. “Na época, nós não tínhamos nem sala para estudar. Muitos de nós éramos transferidos para a escola Ruy Barbosa para termos aula lá. Não tinha salas suficientes no campus da UEMA”, relata. Porém, as paralisações envolviam também os professores, embora alguns, como Maia, se posicionassem de forma contrária. “Eu lembro da cena; Eu, Nice, todos os membros do CA, do DCE, fazendo cartazes no chão. As palavras de ordem, colando, e ele arrancando. E sempre com esse tom: ‘Eu vou processar. Eu vou chamar a polícia”, lembra Mônica.


A então estudante Ana Muniz presenciou de perto o protesto. Naquele período, tanto ela quanto Nice usavam o cabelo raspado. Tinham também a mesma estatura e cor da pele. Ana foi confundida com Nice, e as consequências deste fato foram negativas. "Eu recebi preconceito porque eu era amiga da Nice", conta Ana. "Foi pesado, porque eu estava a favor dela, a favor do protesto, e a faculdade queria expulsar, queria sacanear mesmo. E eu vivenciei isso na pele."


Analisando o protesto de Nice e Marconcine, Mônica frisa que a arte é aberta para todo mundo, mas a forma de cada pessoa explorá-la ou encará-la é individual. “Então, se o olhar dele [Maia] levou para o viés da imoralidade, da afronta, da quebra de hierarquia, já que estava numa situação de poder, a culpa não foi dos manifestantes, muito menos de quem estava inserido nele. O olhar imoral era dele”. 


No dia do protesto, o jornal Viroso seria entregue pela última vez. Maia fazia parte do Conselho de Centro, sentia-se compelido a agir, pois segundo ele, as matérias afrontavam os valores morais que ele sustentava com fervor. Entendia que o jornal funcionava como porta-voz dos alunos, mas não aprovava as narrativas escritas, considerava absurdas e desrespeitosas com Jesus Cristo. “Nem a própria Liratelma escapava”, menciona. Cláudio Marconcine não retornou mais, foi embora para São Luís trabalhar no teatro. Nice voltou, virou bolsista, terminou o curso, fez seletivo e assumiu como professora.


Naquela virada de século, as grandes discussões eram políticas. O Brasil vivia o governo de Fernando Henrique Cardoso. No dia 22 de abril de 2000, a Rede Globo havia lançado o "Relógio dos 500 anos", celebrando o chamado "descobrimento" do Brasil. “Para um historiador ou estudante de História, era uma fachada”, enfatizou Patrick. Não se tratava de descoberta, mas de invasão, seguida  da perseguição aos povos originários.


O Brasil estava nesse campo de debate, enquanto havia, em paralelo, a luta pela regulamentação da profissão de historiador. No evento do ENEH em Belém, manifestantes se dirigiram ao relógio. Alguns queriam jogar pedra, outros defendiam o protesto mais pacífico. A movimentação também aconteceu em Imperatriz. Patrick e Nice iam até a Praça de Fátima colher assinaturas para um abaixo-assinado. Explicavam às pessoas o que é a História e porque era importante regulamentá-la. Politicamente, o sentimento era de frustração e resistência. “Queríamos que a esquerda chegasse ao poder, mas parecia um sonho distante, na época”, lamenta Patrick. Fernando Henrique, que foi presidente entre 1995 e 2002, havia sido reeleito e garantido mais um mandato. A luta era a mesma: que um dia as pautas sociais fossem ouvidas.


Leia o próximo capítulo abaixo

 
 

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